(Agradeço muitíssimo aos colegas que muito gentilmente dispuseram-se a prestigiar esse blog.)
Editor. De tempos em tempos, o SBDC tem sido chamado a analisar atos de concentração de grande visibilidade, que aparentemente ensejariam preocupações concorrenciais consideráveis. Como aqui o entrevistador tem direito a dar palpite, digo que esses atos, vários anos atrás, eram verdadeiras travessias do Rubicão para o SBDC: um momento de afirmação de sua independência política e de seu rigor técnico. Atualmente, após 15 anos de vigência da Lei 8.884/94, o SBDC já debutou (a piada é irresistível).
Mas a "safra" de 2009 parece ter algumas peculiaridades. Primeiro, porque foi pródiga: são vários os atos de concentração "sensíveis" que estão na pauta de 2010. Também porque a coincidência temporal deles remete aos possíveis efeitos da crise econômica sobre as estratégias empresariais, bem como à atuação do BNDES, que tem tido, ao que tudo indica, participação importante ao menos para torná-los viáveis. Por fim, porque alguns dos atos notificados dizem respeito a empresas que têm forte inserção exportadora e/ou pretensões à realização de investimentos diretos no exterior.
A primeira pergunta: essas peculiaridades constituem um novo desafio para o SBDC?
Sérgio Varella Bruna: Não creio que a existência de casos que misturam empenho governamental sobre elementos de uma certa política industrial e os ideais de defesa da concorrência sejam um desafio "novo" do SBDC ou de qualquer autoridade de defesa da concorrência em todo o mundo. Para mim esse é um desafio permanente de todas as autoridades de defesa de concorrência, diante de seu respectivo governo.
Seria tolice tentar ignorar que governos ao redor do mundo muitas vezes assumem a incumbência de proteger seus "campeões nacionais", quer estejamos falando de países de primeiro mundo ou não. A França é pródiga em dar exemplos disso. Basta lembrar os casos recentes nos setores de medicamentos e de energia. A Itália também andou tirando suas casquinhas e por aí vai. Haverá quem diga que os Estados Unidos são diferentes, mas é só tentar vender a Boeing para os árabes que será fácil ver que não é bem assim.
O desafio dos órgãos de concorrência é manter independência com relação a essas influências e comportar-se como se nada disso acontecesse. Mas o cachimbo faz a boca torta e muitas vezes esses órgãos passam a ignorar tudo o mais que se passa e entoar o mantra de que a competição e a eficiência alocativa são os únicos bens eternos. Tudo mais passa a ser mera exploração do consumidor.
Leonor Cordovil. Como bem lembrou o entrevistador, os desafios de 2009 não são os primeiros a tirar o sono (esperemos que tirem o sono) do SBDC. Contudo, temos agora um sistema mais maduro, que já teve a oportunidade de analisar as consequências de seus atos passados. Sem mencionar nomes, várias das indústrias concentradas no passado são agora alvo de discussões de conduta. O grave problema – e previsível – é que a velocidade da análise das condutas não é a mesma velocidade da análise das estruturas. Desta forma, estruturas aprovadas em seis meses provocam prejuízos ao consumidor e à concorrência por anos, até que, enfim, sejam julgadas. Não defendo decisões mais duras e muito menos a reengenharia dos mercados pelo aparelho concorrencial, mas acho que este fator deve ser considerado pelo CADE em seus julgamentos. Não defendo a futurologia durante o julgamento dos atos de concentração, mas as restrições e os termos de compromisso de desempenho existem para isso.
No passado, vários setores defenderam a concentração como estratégia de internacionalização das empresas, o que foi ovacionado pelo CADE (e viva a conjugação dos parágrafos primeiro e segundo do artigo 54!). O CADE já tem agora a oportunidade de olhar para trás e fazer a análise do que era esperado e do que realmente aconteceu, lembrando-se dos prejuízos anticoncorrenciais que foram gerados.
A palavra do momento é a crise. Tudo bem, assumo que o mundo passou por uma crise, mas será que ela atingiu nosso país de maneira a justificar estratégias pouco conservadoras? Creio que não. Há notícias de que o pânico foi maior do que a realidade observada. A crise pode ser a desculpa do momento.
Estas peculiaridades constituem, sem dúvida, argumentos desafiadores, mas a velha e boa análise feita nos mais básicos atos de concentração (vantagens x desvantagens) não pode ser esquecida: sem rodeios, sem interferências momentâneas ou argumentos criativos.
Priscila Brolio Gonçalves: Acredito que algumas das peculiaridades citadas constituem, sim, um desafio para o SBDC. O fato de existirem diversos atos de concentração de maior complexidade, por exemplo, tramitando paralelamente, é novo na história do CADE. Mas acredito que o sistema, especialmente o CADE, esteja preparado para isso. Nos últimos anos, o CADE procurou reduzir, por meio de critérios interpretativos, o número de operações notificáveis. A alteração do critério do faturamento do mundo para o Brasil (Súmula 1) foi fundamental nesse sentido, e o CADE continua “estreitando” as operações objeto de análise, por meio de súmulas ou de precedentes a sumular. A crise também contribuiu para a redução do número de operações, embora seja nítido o reaquecimento a partir de meados de 2009. Finalmente, vale mencionar que o plenário do CADE parece estar “em dia” com as suas obrigações, não havendo uma pilha de atos de concentração pendentes de decisão. Assim que dão entrada no CADE (com parecer da SDE ou da ANATEL), os atos de concentração têm sido processados e votados com agilidade. Assim, entendo que o processamento concomitante de diversos atos de concentração de maior complexidade gera um desafio para o CADE, mas que a autarquia tem plenas condições de superar esse obstáculo.
Quando às “peculiaridades” de algumas operações, não é novidade para o CADE analisar concentrações que contam com a participação de investidor ou representante do governo ou envolvendo empresas que buscam ganhar escala no Brasil para aumentar as exportações. A maior peculiaridade é a crise econômica (por ser a primeira desse porte na história recente de CADE), mas não houve até o momento nenhuma operação aprovada com esse mote no Brasil. Não acredito que a crise terá o efeito de alterar o processo decisório das autoridades, até porque o CADE, ao longo de seus 15 anos de existência, já experimentou pressões (econômicas, sociais e políticas) em vários momentos, independentemente da crise. Na verdade, sempre que há uma operação de grande porte ou complexidade, as pressões são inevitáveis, tanto pela aprovação quanto pela rejeição. Saber lidar com essas situações – de forma democrática, mas sem perder de vista os preceitos e o objetivo da lei antitruste - certamente constitui um desafio, porém não inédito.
Edgard Pereira: Sim. O CADE, bem como os demais órgãos instrutores do sistema de defesa da concorrência, consolidou uma metodologia de análise eficiente para avaliação dos impactos dos atos de concentração no ajustamento competitivo em cada mercado relevante identificado no ato, considerando as características estruturais do mercado, rivalidade e barreiras à entrada. O mesmo não se pode dizer com relação à análise das externalidades (positivas ou negativas) contidas em cada ato. Não há uma metodologia consolidada que permita uma avaliação mais efetiva dos impactos das externalidades sobre o nível de bem estar pós fusão. Essas podem tanto recomendar a aprovação de atos que eventualmente levem à redução da concorrência em mercados específicos como, ao contrário, levar à imposição de restrições a operações que não resultem em preocupações anticompetitivas nos mercados relevantes analisados. Note-se que essa avaliação das externalidades não se confunde com o exame das eficiências econômicas em atos de concentração. Essas o sistema já avalia e há uma metodologia razoavelmente desenvolvida. A análise das externalidades diz respeito aos impactos de uma operação para fora dos mercados atingidos pelo ato. Nesse campo o CADE precisa evoluir.
Amadeu Ribeiro. Penso que esses atos de concentração poderão representar um desafio para o SBDC se suscitarem questões concorrenciais importantes. As autoridades poderão se ver diante de casos complexos, a ensejar análise concorrencial detida e, eventualmente, restrições. Não acredito, no entanto, que as peculiaridades por você citadas venham a ter peso significativo na análise do SBDC.
O argumento da empresa em crise, até onde sei, nunca foi acolhido pelo CADE como justificativa para a concentração econômica. Tenho dúvida se as empresas envolvidas nos atos em questão farão uso do argumento - talvez em um ou outro caso ele faça sentido. Ainda que o façam, ficaria surpreso se o CADE o acolhesse.
Quanto à participação do BNDES, também não acho que tenha maior relevância no contexto do trabalho realizado pelo SBDC. Meu palpite é que o CADE não levará em conta tal participação para os fins de sua análise.
Por fim, o mesmo pode ser dito a respeito da pretensão à inserção internacional como argumento favorável à concentração. O SBDC nunca se sensibilizou com esse argumento. Acho difícil que agora o faça.
Em suma, acredito que o SBDC continuará a utilizar seus padrões tradicionais de análise. Os desafios surgirão se da aplicação desses padrões resultar a constatação de problemas concorrenciais que exijam soluções. Caberá ao CADE conceber soluções adequadas e colocá-las com firmeza.
A segunda: os critérios usuais de análise - que contrapõem possíveis efeitos negativos e positivos do ato de concentração para os consumidores nos mercados específicos de atuação das empresas envolvidas - são suficientes e adequados para lidar com a complexidade dessas situações ou há um trade-off entre a "eficiência antitruste" e o desenvolvimento econômico em sentido amplo?
Sérgio Varella Bruna: Certamente não. É fato que a análise antitruste reconhece que aspectos anticompetitivos de uma operação podem ser compensados por benefícios como inovação e sinergias. Mas os critérios normalmente utilizados tornam muito difícil que esses benefícios sejam reconhecidos em operações como as que hoje estão em pauta.
Em razão disso, a sobrecarga que se põe sobre os órgãos de concorrência é enorme. Têm eles de optar entre a cruz e a caldeira: ou cedem o passo para as influências de "política industrial" que sobre eles se exercem (e se desmoralizam), ou aplicam com rigor o instrumental antitruste e devem arcar com as consequências políticas de terem feito ouvidos moucos aos que detêm o poder. E essas consequências podem ser graves, indo desde incômodos contingenciamentos orçamentários até a infernal convivência com um Legislativo em "pé de guerra".
O fato é que não há uma forma institucionalizada para que a "política industrial" possa permear o mundo da defesa da concorrência, sem causar distúrbios. Há países que contemplam instrumentos para isso (por exemplo, atribuindo ao governo o poder de mitigar decisões do órgão de concorrência por questões de interesse nacional), mas onde eles existem não costumam ser usados, porque seu uso pode avacalhar por completo a política de concorrência e o ônus político é grande.
Talvez não haja meios de resolver esse problema e a única solução seja mesmo a posição um tanto autista de ignorar as influências políticas e tratar a defesa da concorrência como se fosse ela o único Deus verdadeiro.
Mas que as influências políticas produzem seus efeitos ninguém é capaz de negar. Ou será que as rigorosas autoridades americanas deixariam de aprovar o caso Boeing/McDonald Douglas?
Como bem disse este blog um dia desses, o problema não é ter campeões nacionais, mas quem escolhemos para sê-los.
Leonor Cordovil. A resposta a este questionamento pode parecer contraditória em relação à minha resposta ao primeiro questionamento – mas não é.
Tenho medo de argumentos como “lançamento da empresa como um player mundial” e “crise econômica força a aprovação”, mas acho que a análise antitruste não deve se distanciar da realidade econômica. Os critérios usuais de análise são fundamentais para o exame antitruste, mas concordo que a teoria pura de Chicago merece ser completada por outros valores.
O problema está, talvez, no balanço entre estes valores e os critérios usuais de análise.
Citemos, como fonte histórica, o caso Ambev. Nele, foram considerados emprego, lançamento internacional de uma empresa brasileira, desenvolvimento de uma empresa nacional. Contra tais valores estavam sérias restrições concorrenciais e dúvidas sobre a eficiência distributiva, posteriormente considerada no caso Garoto. Respostas diferentes para casos contíguos. Contradição? Não. Um dos princípios basilares do Direito Econômico é a dinamicidade. O desenvolvimento econômico pressupõe que a ação do Estado (decisão administrativa) se adapte ao caminho escolhido pela comunidade (a tal da política econômica). Não se pode congelar o Direito Econômico, aplicando-se regras estanques, que não possam sofrer retoques de realidade. O Direito contribui para o desenvolvimento se, e apenas se, enxerga esta realidade.
Priscila Brolio Gonçalves: A lei brasileira já contém mecanismos que permitem ao CADE incluir o argumento do desenvolvimento econômico na análise antitruste. Na minha leitura, o art. 54, §1º, letra ‘c’ da Lei 8884/94 trata da eficiência econômica e do desenvolvimento em sentido estrito, mas o §2º do mesmo artigo permite que a autoridade considere argumentação relacionada ao desenvolvimento em sentido amplo ao tratar do “motivo preponderante da economia nacional e do bem comum” como razão para aprovação da operação. A própria lei restringe muito as hipóteses de cabimento desse argumento, ao dispor que devem estar presentes três condições do parágrafo anterior e que em nenhuma hipótese o consumidor ou usuário final deve ser prejudicado. Mas o argumento é permitido, pode ser explorado de forma inteligente pelas partes e não deve ser desprezado pelas autoridades.
Dito isso, há uma questão mais ideológica, sobre a possibilidade de conflito entre os preceitos que orientam a análise antitruste de concentrações (incluindo a eficiência) e a ideia de desenvolvimento econômico. Na minha opinião, não existe conflito (nem mesmo em tese), pois acredito que a concorrência traz desenvolvimento, e a sua falta somente gera perdas para a sociedade como um todo. Não me refiro à concorrência como (necessariamente) a pluralidade de agentes econômicos no mercado. A “concorrência monopolista” (ou “schumpeteriana”) também entra nessa categoria. Nesse contexto, a análise bem feita de concentrações contribui para o desenvolvimento econômico, ao separar entre as operações nocivas e aquelas que não têm o condão de gerar prejuízos (mesmo nos casos de estruturas concentradas). É claro que sempre haverá erros, pois a análise é geralmente perspectiva, mas a incidência destes pode ser reduzida com o crescente estudo dos efeitos das decisões do CADE sobre o mercado.
Edgard Pereira: A "eficiência antitruste" é um meio, não um fim em si mesmo. O objetivo da institucionalidade antitruste é defender os agentes econômicos, consumidor em especial, do exercício abusivo de poder de mercado, tanto repressiva quanto preventivamente. Limita-se, em grande medida, a "prevenir" e "vigiar" o comportamento das empresas em estruturas de mercado existentes. O desenvolvimento econômico dá-se, primordialmente, pela ruptura de estruturas existentes, criação de novos setores econômicos, novos métodos de organização da produção, novos produtos. Para resumir em uma palavra, o desenvolvimento econômico decorre do investimento, nas suas mais diferentes formas. A atual metodologia adotada pelo CADE e demais órgãos de instrução não dá conta dessa variável chave: investimento. Por mais que esse tema apareça aqui e ali nos processos, esse comparecimento é essencialmente retórico. A metodologia de análise atualmente adotada é conceitualmente estática: resume-se a avaliar o comportamento dos preços e quantidades pré e pós fusão, em mercados relevantes específicos. Não há um método para capturar os incentivos ao investimento resultantes de uma fusão ou associação. E não é porque não haja instrumental analítico para isso. A literatura econômica, de qualquer matriz teórica, é pródiga em análises e modelos que tratam do processo de investimento. Provavelmente essa carência analítica do CADE deriva-se do fato de que essa preocupação com o desenvolvimento seja menos relevante, por definição, nos países desenvolvidos, fonte básica da literatura econômica e do arranjo institucional da defesa da concorrência nesses países, consolidados nos “guias de análise” lá desenvolvidos e aqui adotados. Tratar dessa questão me parece o desafio mais importante e urgente a ser enfrentado pelo modelo brasileiro de defesa da concorrência.
Amadeu Ribeiro. Creio que os critérios usuais são suficientes e não acredito em trade-off entre concorrência e desenvolvimento econômico. Para que tenhamos desenvolvimento é necessário que a lei concorrencial seja aplicada sem ressalvas. Ela é um dos pilares da formação de um ambiente econômico livre, sem o qual é difícil ter desenvolvimento. Ou seja, permitir a concentração econômica sob a crença de que ela nos trará desenvolvimento seria um equívoco.
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